segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Henfil


Introdução: O DESENHO FICA

Henrique de Souza Filho, Henriquinho, Henfil. Pai de Ivan Consenza de Souza, o qual é feito de carne e osso. Porém possui outros filhos, os quais não são tão normais, foram feitos a leves e ligeiros traços, cada um deles – Baixinho, Cumprido (com u mesmo), Capitão Zeferino, Bode Francisco Orelana, Graúna, Ubaldo etc. – expressam um pouco da personalidade do genial Henrique, cartunista e jornalista, um dos mais ferrenhos inimigos da ditadura militar e do falso moralismo brasileiro.

O trabalho de Henfil sobreviveu a ele. Os que viveram, como denominou Chico Buarque, “a página infeliz da nossa história”, ou seja, a ditadura militar, com certeza lembram de alguns de seus personagens ou expressões e com certeza se deleitam ainda hoje ao olhar os quadrinhos e cartuns feitos por Henfil e não só por ele, mas por toda a patota do Pasquim. Porém, com o sucateamento do nosso ensino, com a desvalorização da nossa cultura, Henfil continua sendo ameaçado de morte mesmo após ter morrido. Agora querem matá-lo apagando seu traço. Claro que, em alguns planos Henfil já alcançou a imortalidade. Quem nunca se referiu a Flamengo, Vasco e Fluminense como Urubu, Bacalhau e Pó-de-Arroz respectivamente? Foram essas criações de Henfil também. Porém, o lado mais polêmico de Henfil, o lado político, combativo, revolucionário, querem fazer com que caia no esquecimento.

Para entender as obras e a importância de Henfil é necessário, de certa forma, reportar o pensamento para um período em que o jornal era o grande meio de comunicação. Um tempo em que o analfabetismo era muito maior que hoje e o desenho era uma forma incrível de se fazer entender. A moral e o costume eram outros também. Desenhos que hoje podem parecer sem sentido, escandalizaram os anos 60 e 70. Imagine em pleno governo militar um sujeito ter a debochada audácia de desenhar um frade escarrando na cara do outro, ensinando São Pedro a fazer gestos obscenos, rindo dos torturadores. Sem falar nos desenhos que retratavam os problemas do nordeste, que escancaravam a paranóia presente no povo. Além disso, Henfil estava disposto a atacar até mesmo a oposição. Quem saísse um pouquinho da linha e fosse um pouquinho só para a direita... já era, seria fuzilado pelo sarcasmo, o que rendeu a Henfil a acusação de fazer parte de uma patrulha ideológica.

Polêmico tanto na direita, quanto na esquerda, Henfil é a expressão de um pensamento popular e simples. Seu lema era: “Poesia não! Sadismo sim!”. Infelizmente, hoje muitos que se dizem combativos militantes brasileiros desconhecem a obra de Henfil, mesmo ela sendo fundamental para se entender um período de nosso país. É mais impressionante que esses mesmos brasileiros muitas vezes digam conhecer e se derretam por todas as obras soviéticas, chinesas... É triste perceber a desvalorização da nossa cultura. Henfil é sem sombra de dúvida o que falta aos nossos militantes brasileiros: “um sorriso no rosto e incansável vontade de lutar contra o dogmatismo e a opressão”. Henfil morreu, mas manter sua obra viva é questão vital nossa.

1ª parte: INFÂNCIA MARCANTE
Era dia 5 de fevereiro de 1944 quando nasceu no norte de Minas Gerais, mais precisamente em Nossa Senhora de Ribeirão das Neves, região árida e de vegetação rasteira, Henrique de Souza Filho. Sua mãe era uma fervorosa católica chamada Maria da Conceição, a qual havia estudado para ser professora primária, mas trabalhava como costureira. Seu pai era o simpático Henrique de Souza, o qual adorava dançar e tocar acordeão. Contando com Henriquinho, nome pelo qual chamavam Henrique de Souza Filho, o casal ao todo teve 12 filhos, dos quais 8 sobreviveram aos primeiros anos de vida. Desses 8 filhos 3 meninos eram hemofílicos, o mais velho Herbert de Souza (o famoso sociólogo Betinho), Francisco Mário (compositor conhecido como Chico Mário) e ele, Henrique.

A infância de Henrique pode ser analisada por 3 ângulos diferentes, embora sempre ligados, que marcaram profundamente a personalidade do cartunista Henfil. O familiar, englobando cultura e educação. O ângulo que exibe a hemofilia e destaca a importância dela na sua construção de índole e o terceiro que aponta como Henrique começou a tomar gosto pelo desenho, fator esse que faz uma ponte com a sua juventude e dela parte para a explosão como mais polêmico cartunista (senão artista de forma geral) brasileiro de sua época.

Seguindo a ordem e vendo do primeiro ângulo possível, o familiar, observamos um menino que foi criado no seio de uma família relativamente pobre e errante. Mudavam muito de casa e de cidade, prática que vai acompanhar Henrique até o fim dos seus dias. Sua mãe vivia preocupada para que os filhos seguissem o rigoroso caminha da fé católica e não caíssem nas tentações de Satanás. Sempre que necessário os castigava com pimentas e o que mais fosse preciso, depois os obrigava a pedir perdão a Deus. Seu pai era um sujeito extremamente boa-praça o qual não parava em uma profissão. Muito mão aberta e sempre confiante na honestidade alheia, vivia endividado e assim conseguiu perder uma padaria que possuía. Trabalhar com tecidos e com cinema mudo também foram atividades que não deram certo. Porém graças à simpatia chegou a ser prefeito relâmpago de uma pequena cidade mineira. Um serviço que o pai conseguiu e que marcou bastante Henrique foi em uma funerária em Belo Horizonte. Como Henrique disse posteriormente, já conhecido como Henfil, foi ali que ele deu conta de sua existência. Brincava entre os caixões e adorava dar sustos nos amigos.

O bom coração do pai e a religiosidade da mãe vão marcar Henfil profundamente. Sua infância em colégios religiosos (dos quais foi péssimo aluno), seus conflitos internos entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre Deus e o Diabo vão lhe acompanhar até a morte. Henriquinho era uma criança levada, que via certas travessuras como pecados quase que irreparáveis. Na sua cabeça os dogmas da Igreja não ficavam acomodados, Henriquinho sempre queria entender melhor o que para ele não estava bem explicado.

A hemofilia vai colocar Henriquinho em uma grande intimidade com a morte. Cada dente arrancado, cada tombo levado, cada topada, era motivo para terrível inchaço e até mesmo sangramento incontrolável. Esse convívio com o perigo e a morte fez com que Henriquinho desenvolvesse uma atenção espetacular, pois por todos os lugares que passava tinha que prestar o quíntuplo de atenção. Uma pedrinha, um degrau, uma poça d’água, tudo poderia ser uma armadilha que provocaria um terrível acidente. Outro fator que marca a personalidade de Henfil que vem desde essa época de infância é a pressa e o gosto pela vida. Além de caminhar com a morte ao seu lado, Henriquinho tinha que aturar o sofrimento de seus irmãos Betinho e Chico Mário que possuíam mesma doença. Observando os males causados pela hemofilia que não permitia a normal coagulação de seu sangue e de seus irmãos, Henriquinho sabia que não ia viver muito tempo, sendo assim a vida deveria ser vivida intensamente.

A preocupação, porém, não estava só com Henriquinho, seus parentes e amigos tinham uma atenção especial para com ele. Sua mãe acolchoava todas as quinas e cantos perigosos da casa, seu médico se aprofundou nos estudos da hemofilia para poder atender melhor a família, seus amigos de gangue de rua mesmo quando trocavam xingamentos sabiam que não podiam bater em Henrique, pois poderia ser fatal (muitas vezes ele se aproveitava disso).

Todo esse cuidado por parte dos amigos e dele próprio teve um saldo positivo, pois foi isso que fez com que ele sobrevivesse à infância, porém causou também um certo aspecto de inferioridade e contribuiu para o caráter desafiador de Henfil. Com as várias faltas à escola por causa da hemofilia (se bem que talvez a maioria de suas faltas às aulas seja por malandro assassinato delas), com o cuidado com seu corpo como se fosse de cristal, Henriquinho se sentia um pouco inferiorizado e sempre que podia, ou tinha coragem, provava para seus amigos que era uma criança normal e não um sangue de barata, como lhe ofendiam. Dava grandes saltos, aprontava as mais loucas travessuras, mesmo que tudo isso pudesse lhe provocar uma noite muito mal dormida por causa de prováveis dores no corpo.

O desenho aparece bem cedo na vida de Henriqunho. Quando moleque, nos anos 50, já se entregava a leitura de quadrinhos como Pato Donald, Tarzan, Zé Carioca e Recruta Zero. Chegava em casa com várias revistas emprestadas pelos colegas e se punha a copiar tais desenhos. Mas, o que agradava mesmo sua família, especialmente a sua mãe, eram os desenhos religiosos que Henrique fazia, fossem figuras de santos ou altares de igrejas. Muitas vezes ele usava isso como forma de conquistar o carinho da mãe e a oportunidade de perdão para alguma travessura aprontada.

Aos 10 anos Henrique começa a ampliar o público de suas obras, desenhava moldes de roupa extremamente extravagantes e criava e montava jornais familiares com incríveis notícias como “Henriquinho está há 12 dias sem tomar banho...”. Aos 12 anos os desenhos de Henrique fizeram verdadeiro sucesso entre seus familiares, depois de ilustrar um álbum fotográfico a pedido de sua irmã.

Foram esses os pontos fundamentais que marcaram a infância de Henfil. Entrando na adolescência esses fatores que dizem respeito à família (cultural e educacional), à hemofilia e ao desenho vão começar a tomar dimensões maiores, principalmente no que diz respeito ao terceiro fator. Henriquinho começaria a construir definitivamente todas as características que o transformariam no cartunista que marcou a história.

2ª parte: JOVEM MILITANTE
Na adolescência Henriquinho começa a amadurecer vários de seus pensamentos. Um deles é o religioso, quando entra em contato, graças ao seu irmão Betinho, com os dominicanos. Ele que nunca havia seguido ao pé da letra as normas da igreja (mesmo tento sido coroinha), com a capacidade de aprontar coisas inusitadas como roubar moedas que as beatas colocavam no altar, se impressionou ao ver como as pessoas dessa vertente religiosa riam, dançavam e falavam palavrões e mais que isso, se preocupavam com os problemas sociais, em falar sobre justiça e liberdade.

A década de 60 foi muito marcante para Henriquinho. Um dos episódios que mudaram a sua vida foi o falecimento de seu pai. De uma vez por todas deveria assumir uma postura madura dentro de casa. Trabalhava e estudava a noite, se tornou um aluno empenhado e não mais aquele nota zero e matador de aulas dos colégios religiosos. Um de seus empregos foi de officeboy, antes, com o pai ainda vivo, já havia trabalhado de bilheteiro de cinema. Henriquinho como officeboy estava longe de ser um exemplo de profissional, ficava pela rua tomando sorvete, mexendo com os amigos e, com seu salário, fazia musculação para fortalecer o corpo contra a hemofilia.

A Revolução Cubana mexia com os sonhos de grande parte dos jovens de fins dos anos 50 e início dos anos 60. Henriquinho estava envolto por todo esse ambiente político. Seu irmão Betinho estava arduamente engajado na JEC, chegando até a ser liderança dessa esquerda católica. Além disso, era conhecidíssimo e fundamental no meio estudantil, pois fazia negociações entre cristãos e comunistas e não parava por aí, o irmão mais velho e exemplo para Henriquinho apoiou a campanha pela posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros e, em 1962, se tornou secretário geral da Ação Popular.

Henrique Filho tentava acompanhar todas essas viradas políticas. Era um grande admirador de seu irmão e também queria se tornar tão engajado quanto. Tentou ler O Capital de Karl Marx, porém dormiu sobre o livro. Não conseguia e nem quis jamais trocar seu jeito gozador e divertido pela seriedade dos políticos de terno e gravata. Mas, embora tenha dormido sobre o livro de Marx, Henrique gostava de ler. Tanto que roubava os livros da livraria Itatiaia a qual costumava freqüentar.

Correndo atrás da militância, Henrique, acaba por agarrá-la. Passa a atuar na União Municipal dos Estudantes Secundaristas, controlada pela JEC. Além disso, usou seu talento para o desenho, que antes era só pra diversão familiar, para mostrar seu diferencial dentro dos movimentos. Desenhava para os movimentos estudantis da faculdade do irmão e quando desenhava no meio dos estudantes ficava rodeado de fãs. Foi assim que parou no O Resmungo jornal da JEC.

É nessa época que Henrique conhece Sara, pela qual ficou loucamente apaixonado. Falava em se casar e tudo mais, porém teve que conhecer de perto o preconceito. A garota foi proibida de namorá-lo por ser hemofílico.

Em busca de um novo emprego, acabou conseguindo, com a indicação de Betinho, uma vaga de revisor na revista Alterosa que havia passado por reformulações, tinha recebido um grande investimento e tinha por obrigação estourar. Só que Henriquinho estava diante de um grande problema: não sabia nada de português. Quando a edição experimental da revista saiu, o responsável por ela, Roberto Drummond, a leu por completo e ficou possuído de raiva com os erros de revisão. Foi descobrir que Henriquinho, o revisor da Alterosa, só ficava desenhando e não entendia nada de sua atual função.

Henriquinho acabou sendo chamado para conversar com Roberto Drummond, diretor da revista. Foi até sua sala tremendo de medo, precisava do emprego, embora detestasse ser revisor. Drummond pediu para que ele lhe mostrasse os desenhos. Quando o diretor bateu os olhos nos papéis não teve dúvida, era esse o novo valor do cartum que estava procurando para lançar em sua revista. Saiu logo dizendo para o garoto que lhe transformaria em cartunista da Alterosa e que já sairia no próximo número. Prometeu lhe dar revistas francesas para que aprimorasse seu traço vendo cartunistas como Bosc e Sempé. Só faltava para Henriquinho um nome de cartunista. Roberto Drummond perguntou qual era seu nome todo e ao ouvir Henrique Filho logo sentenciou: “Você vai assinar Henfil. Hen de Henrique e Fil de Filho”. Nada satisfeito e sob grande pressão, acabava de nascer Henfil, apelido que se tornaria mais famoso que a própria pessoa que alcunhava.

3ª parte: OS PRIMEIROS TRAÇOS ASSINANDO HENFIL
Os traços ágeis acompanharam Henfil desde o início de sua carreira, porém a princípio seu humor era mais ingênuo. Estreou na revista Alterosa que trazia Nilton Santos na capa, com cartuns sobre suicídio. Seus primeiros momentos como cartunista foram marcados pela pressão que sofria de Roberto Drummond. Henfil não gostava de seu apelido e não se achava um bom cartunista. Aceitava isso mais pelo dinheiro e por saber que era uma oportunidade das que não se pode desperdiçar.

Belo Horizonte vivia ares esquerdistas e progressistas, porém o ano de 1963 surgiu para desestabilizar o governo Jango. Conspiradores elaboraram listas com dezenas de comunistas que deveriam ser anulados, entre os quais estavam dois irmãos de Henfil: Betinho e Wanda.

Em 1964 vem o golpe militar. Betinho foge para o exílio no Uruguai e Henfil assume de vez o lugar deixado pelo pai. Cuidava das compras e acompanhava os estudos de Chico Mário.

Pressões familiares e pressões no trabalho marcaram o cotidiano de Henfil nesse princípio de carreira. No meio de tantas pressões ele acabou criando (obrigado por Drummond) dois personagens que levou para o resto da vida: os frades Baixinho e Cumprido, os quais estrearam na Alterosa em 25 de julho de 1964 e logo depois, entre o natal e o ano novo, sairiam de cena com o fechamento da revista.

Henfil ainda não satisfeito com a sua vida de cartunista resolveu fazer vestibular para sociologia e passo em 8ª lugar. Tinha em seus planos se tornar um professor, até porque, após o golpe militar, a imprensa de Minas perdeu força. Todos os jornalistas queriam Rio de Janeiro ou São Paulo.

Seu sonho de ser um futuro professor começou a chegar ao fim quando recebeu uma proposta para se tornar cartunista do Diário de Minas (DM2), o qual reunia o que havia de melhor do jornalismo cultural.

O Diário de Minas está presente como algo muito importante na vida de Henfil, pois foi nele que começou a perceber que poderia virar realmente um cartunista profissional. Seus trabalhos nessa época têm como abordagem temas regionais como cemitérios para cães e também temas internacionais como Ku-Klux-Klan.

Henfil lia sempre os jornais e até o fim de sua carreira teve o hábito de marcar as notícias que poderiam virar cartum. Tudo em sua mão virava zombaria: do futebol ao salário mínimo.

Até que chegou a hora de Henfil se deparar com um difícil dilema: prosseguir no cartunismo ou dedicar-se à sociologia? Nessa época pouquíssimos profissionais viviam somente do traço, até mesmo nomes consagrados: Millôr Fernandes era escritor de teatro, Ziraldo trabalhava com publicidade, Jaguar era funcionário do Banco do Brasil e Fortuna era diretor de arte da enciclopédia Barsa. Sendo assim, tudo levava Henfil a desistir do humor e do cartum que na época era quase um bico, ainda mais para um jovem inexperiente como ele.

Esse dilema durou na cabeça de Henfil até o dia em que o professor Antônio Otávio Cintra lhe falou que deveria seguir com o cartum e largar a sociologia. Faltando um mês para acabar o primeiro semestre, Henfil, trancou a matrícula e dedicou todas as suas forças ao cartum. Acompanhava outros humoristas e cartunistas, não só por gostar, mas também para se aperfeiçoar. Entre os que admirava estavam Borjalo, Millôr e Stanislaw. Gostava tanto do comunista Aparício Torelly, o Barão de Itararé, que queria criar a “Fundação Aparício Torelly” para lhe preservar a obra.

O trabalho no Diário de Minas estava indo tão bem que rendeu a Henfil o troféu Cid Rebelo Horta como melhor cartunista de 1965, ano em que forneceu ao DM2, 1800 desenhos. Foi então convidado pela Editora do Professor para publicar uma seleção dos seus melhores trabalhos.

Tal seleção levaria o nome de Guerra é Guerra, porém Henfil ficou sabendo que Jaguar e Fortuna estavam organizando uma antologia com o mesmo nome e suspeitou que eles estivessem plagiando seu livro. Garoto atrevido, Henfil, partiu para o Rio de Janeiro pensando em se encontrar com esses dois cartunistas já consagrados.

Fortuna até que cedeu e disse que não teria problema em mudar o nome de sua antologia, porém seu companheiro Jaguar bateu firme o pé e disse que não mudaria de jeito algum, ainda ressaltou que não teria problema que as duas obras saíssem com o mesmo nome e lembrou a vantagem que teria Henfil, pois a sua sairia primeiro.

Sem sucesso nessa sua primeira etapa no Rio de Janeiro, Henfil vai atrás da segunda: queria que Millôr escrevesse o prefácio de seu livro. Também não conseguiu.

Puto da vida, Henfil, teve que retornar para Minas Gerais sem atingir nenhum dos seus objetivos no Rio de Janeiro. Resolveu esnobar o título Guerra é Guerra dando outro para o seu livro. Na verdade parodiando o título do filme Hiroshima Mon Amour de Alan Resnais. Hiroshima Meu Humor foi lançado em meados de 1966 em uma concorrida noite de autógrafos.

Nesse mesmo ano, 1966, o irmão de Henfil, Betinho, foi preso no Rio de Janeiro. Betinho era ávido leitor de Régis Debray e Mão Tsé-tung, havia chegado de Cuba sem conseguir apoio para um levante armado no Brasil, pois o governo cubano preferiu financiar a ALN de Carlos Marighella.

No Jornal dos Sports, para o qual Henfil passou a trabalhar, se engana quem pensa que ele fez um cartum despolitizado (se é que isso é possível). Levou a luta de classes para o JS. Apelidou a massa atleticana de Urubu e a lançou numa luta contra a suposta elite cruzeirense a qual chamava de refrigerados. Com o sucesso que fez, foi convidado por Joffre Rodrigues para ir ganhar 3 vezes mais trabalhando para o Jornal dos Sports do Rio de Janeiro.

4ª parte: RIO DE JANEIRO - FUTEBOL E POlÍTICA
Em 1967, Henfil, chegou ao Rio de Janeiro para trabalhar no Jornal dos Sports e em O Sol, o qual fazia parte do primeiro. Nesse mesmo ano morreu Che Guevara e Henfil fez questão de dedica-lhe alguns cartuns. Outra homenagem revolucionária fez consultando livros como Dez dias que abalaram o mundo de John Reed, para publicar em 16 capítulos a história da Revolução Russa no jornal O Sol.

Quando chegou o ano de 1968 a equipe do JS enfrentou uma grande crise e foi obrigada a suspender o jornal O Sol e o Cartum JS. Henfil de uma única vez perdeu dois empregos. Abalado, pensou em voltar para Minas Gerais, mas como o jornal continuou lhe pagando, mesmo sem trabalhar, resolveu permanecer no Rio de Janeiro, embora sempre que pudesse fosse para Minas Gerais ver sua família e a namorada, a qual em janeiro desse mesmo ano passou a ser sua esposa. Seu nome era Gilda.

Henfil, doido por quebrar tradições e sempre anticlerical, aprontou todas em seu casamento a ponto de debochar do padre o tempo inteiro sem que esse percebesse.

Sem paixão alguma pela Jovem Guarda e fã dos Beatles, Henfil preenchia muitas vezes seu tempo vago escutando músicas da banda. Conseguiu emprego em revistas e jornais como Pais e Filhos e Correio da Manhã. Jamais largou seu lado político, tendo participado de atos importantes como a Passeata dos Cem Mil.

Em dezembro de 1968 um duro golpe marca não só Henfil, mas todo o povo brasileiro. São suspensas as garantias constitucionais graças ao AI-5.

O ano de 1969 marcou o Jornal dos Sports. Foi o ano em que Henfil adaptou suas criações do JS mineiro para o Rio de Janeiro. O torcedor virava novamente protagonista através de personagens como Urubu (para o Flamengo), Bacalhau (para o Vasco), Pó de Arroz (para o Fluminense), Cri-cri (para o Botafogo) e Gato Pingado (América). A polêmica estava feita. Vários torcedores se revoltaram com os apelidos e enviaram várias cartas reclamando, porém, com o tempo, os apelidos fizeram tanto sucesso que os personagens passaram a se confundir com os clubes.

A relação de Henfil com as torcidas no Maracanã era algo inacreditável. Ele não só ia aos jogos. Lançava no jornal frases, apelidos e manias que pegavam facilmente. Certa vez, em um jogo Brasil contra Uruguai, pediu no jornal para que todos presentes no estádio Mário Filho (Maracanã), gritassem: “MARICÓN” para os uruguaios. Não deu outra. No dia do jogo 170 mil pessoas gritaram a cômica ofensa para a seleção visitante.

A preocupação do Jornal dos Sports era para que Henfil não ultrapassasse os limites e incitasse a violência entre as torcidas. Porém seus cartuns continuavam retratando a luta de classes usando os torcedores como símbolos. Os populares Urubu e Bacalhau guerreavam contra Pó de Arroz e Cri-cri, os quais eram representantes das elites.

Enquanto Henfil (o qual em 1969 passou a ser pai) estourava no Jornal dos Sports era lançado o semanário Pasquim. Não era bem o jornal que Henfil sonhava no momento, pois sua vontade na verdade era lançar uma revista só com a nova geração de humoristas. Porém, foi aceitando a idéia e acabou indo de encontro com a patota do novo jornal. A princípio queriam que ele prolongasse seu trabalho esportivo ao Pasquim, todavia Henfil não aceitou a proposta, dizendo que falar de futebol para esse tipo de jornal seria algo sem importância. Resolveu então voltar com Os Fradinhos, mas esses ainda estavam inocentes demais para um jornal como o Pasquim. Sendo assim, pegou o personagem Baixinho e lotou-o do mais terrível sadismo, o que o levou a ganhar até mesmo as capas do semanário. Finalmente havia aparecido um cartunista para quebrar o tabu que a religião deveria ser poupada. Havia chegado a vez, em plena ditadura militar, à crítica dos dogmas e medos.

Os personagens Baixinho e Cumprido na verdade são mais do que uma crítica. Eles representam algo incontrolável dentro de Henfil, um conflito interno seu. É o lado carola, careta e conservador contra o lado revolucionário, anarquista e utópico. Conflitos que vêm desde a juventude quando colocou frente a frente a severa educação familiar e a descontração dominicana.

Os Fradinhos fizeram tanto sucesso que logo começaram a disputar preferência com o símbolo do jornal, o ratinho Sig de Jaguar. Os leitores enviaram várias cartas para Henfil não só elogiando, mas também querendo decidir os rumos da dupla de frades. O Pasquim chegava a 180 mil exemplares e Henfil criava polêmica com os leitores, colocando o personagem Baixinho para brigar com eles e depois se retirando dos quadrinhos para só voltar algum tempo depois, com 235 mil exemplares sendo vendidos, enlouquecendo os fanáticos pelo sadismo dos frades.

Henfil gostava mesmo de provocar o seu leitor. Posteriormente chegou a matar seus personagens Baixinho e Cumprido, porém foi tão xingado por cartas que logo tratou de ressuscitá-los.

Denis Moraes, biógrafo de Henfil, fez um ótimo resumo do que representou o novo semanário carioca: “O Pasquim impôs-se pela imaginação do incontrolável, pela quebra de formalidades jornalísticas. Com alvos claros: a ditadura, a classe média moralista, a grande imprensa, os caras-de-pau e os coniventes de plantão”.Não poderia mesmo ser outro o jornal em que Henfil mais se destacou politicamente. O Pasquim tinha muito dele e ele muito do Pasquim. Esse era o jornal que ria na cara da ditadura militar com paráfrases do tipo: “Pasquim: ame-o ou deixe-o”.

Liberdade era o que não faltava Henfil para desenhar, mesmo vivendo em uma época de regime militar. Com sua criatividade insana conseguia dar dribles incríveis na censura. O Pasquim era seu espaço onde desenhava, indicava discos, fazia denúncias. Apesar de tanta afinidade com o jornal não cruzava extremamente bem com toda a patota do Pasquim. Um deles que se tornou seu amigo de verdade foi Jaguar, o qual Henfil adotou para ser seu irmão mais velho.

O Pasquim era também um jornal de grande competição. Respeitando a pluralidade, o semanário possuía diferentes estilos de cartuns, de textos e de pensamentos. Isso acabou criando uma espécie de disputa entre eles. Cada hora um estourava com um texto novo, um desenho novo. Em cada momento era um novo membro da patota que estava na boca do povo. Isso acabou ajudando o jornal a crescer, embora não tenha servido de símbolo de união entre seus escritores e cartunistas. O crescimento do Pasquim também foi favorecido pela imbecilidade do governo militar, o qual não acreditou em sua capacidade e quando se deu conta estava criando um inimigo, engraçadinho e mal-educado, dentro de casa.

A última gota de paciência dos militares com o Pasquim caiu quando Jaguar teve a audácia de fazer um cartum debochando do falso herói nacional Dom Pedro I. O resultado não poderia ser outro: grande parte da patota foi parar atrás das grades no dia 30 de outubro de 1970. Henfil conseguiu se esconder antes que o levassem preso.

Apesar de ser um momento difícil foi muito importante para o Pasquim, por resistir e não sair de circulação. Continuou teimosamente sendo publicado. Os militares se puseram confusos, pois vários dos cartunistas mesmo presos tinham desenhos publicados. Mal sabiam eles que os que estavam soltos falsificavam desenhos e assinaturas para confundir a todos. Além disso, vários intelectuais como Glauber Rocha e Chico Buarque mostraram solidariedade e se ofereceram para escrever textos para que o Pasquim pudesse continuar na ativa. Com tantas dificuldades as vendas caíram pela metade.

Os presidiários do Pasquim só conseguiram sair em liberdade no dia 31 de dezembro de 1970. O semanário estava cheio de dívidas devido à falta de vocação empresarial de seus integrantes e gastos supérfluos. Henfil apontou Tarso de Castro como o grande culpado pela falta de dinheiro, acusando-o de esbanjar muito e não ser um bom profissional. Em queda livre as vendas do Pasquim caíram para 48 mil exemplares.

Alguns dos jornalistas assumiram maior responsabilidade e se engajaram em levantar o jornal. Millôr ocupou a posição de presidente e Henfil de editor geral. Uma das suas grandes sacadas foi lançar no número 60 As Cartas pra Mãe e posteriormente a sua criação mais polêmica: O Cemitério dos Mortos-Vivos, onde enterrava qualquer um que cometesse o mais leve desvio para a direita ou que deixasse de encarar a situação de luta contra o governo militar. Uma das suas maiores vítimas foi o cantor Wilson Simonal, o qual não só foi enterrado pelo personagem Cabôco Mamado (figura principal do Cemitério dos Mortos-Vivos) como também teve seu cérebro sugado pelo Tamanduá. Porém, não foi essa vítima a que mais abalou a todos. Henfil assustava quando atacava até mesmo a oposição ou personalidades que muitos julgavam acima do bem e do mal. Enterrou em seus cartuns Roberto Carlos, Tarcísio Meira, Glória Menezes, Pelé, Marília Pêra e por incrível que pareça enterrou Drummond, Clarice Linspector e até mesmo Elis Regina (a qual depois se tornou sua grande amiga). Para quem não consegue entender o porquê dos enterros, ficam as palavras de Henfil sobre seu cartum do Cabôco Mamadô com Clarice Linspector:

“Eu a coloquei no Cemitério dos Mortos-Vivos porque ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e de passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz. Num momento como o de hoje, só tenho uma palavra a dizer de uma pessoa que continua falando de flores: é alienada.”

A fase referente ao Cabôco Mamadô não foi fácil na vida de Henfil ao contrário do que possa parecer. Apesar de estar em destaque na mídia e criando polêmica, muitos dos enterros em desenho magoaram não só os Mortos-Vivos, mas ao próprio Henfil. Um exemplo disso foi Elis Regina que ficou extremamente magoada e que deixou Henfil com seu coração em pedaços por tê-la machucado. Não foi em vão que no último cartum da série Henfil enterrou a si mesmo. O Cabôco Mamado acusava-o de ser ausente na criação de seu filho Ivan.

Essas polêmicas e repulsas eram tão comuns na vida do Henfil que é impossível não falar delas. Os Festivais Internacionais da Canção da Rede Globo também eram perseguidos por Henfil o tempo inteiro. Ele reclamava que a música brasileira estava sendo deixada de lado e quando era lembrada só aparecia se não atacasse a ditadura. Resumindo: Henfil achava o festival altamente alienador. Para repudiá-lo inventou o troféu Urubu de Prata parodiando o Galo de Ouro (prêmio do festival). O prêmio foi confeccionado por Caio Mourão e dois troféus foram entregues: um para Pixinguinha e outro para Chico Buarque de Holanda.

No Programa do Chacrinha em 1970 Henfil recebeu o Troféu Velho Guerreiro, como melhor cartunista do ano. Embora premiado e reconhecido nacionalmente, muitos personagens de Henfil ainda estavam por vir. Entre eles está o trio da caatinga: Capitão Zeferino, Bode Francisco Orelana e Graúna. Tais personagens surgiram no Jornal do Brasil e fizeram um incrível sucesso, retratando as dificuldades do Nordeste brasileiro e levando uma mensagem de luta contra a ditadura militar.

O princípio dos anos 70 foi de muito trabalho para Henfil que desenhava para vários jornais e revistas. Entre eles estão: Pasquim, Placar, O Dia. Também é um período de grande criação. É nessa época que lança sua revista Fradim, a qual foi um grande sucesso da época. Usando toda a sua malandragem, Henfil, lançou a revista no número dois e inventou que o número um já tinha esgotado. Todo mundo quis comprar logo antes que o dois acabasse também. Esperteza somada a conteúdo de qualidade. A revista só poderia mesmo ter conquistado ótimo espaço entre os admiradores de Henfil.

Não só de mudanças na vida profissional foi feito o começo dos anos 70 para esse discípulo do Barão de Itararé. Mudanças na vida pessoal também ocorreram e foram marcantes. A mais marcante delas foi o fim de seu casamento com Gilda e, algum tempo depois, seu início de namoro com Berenice Carvalho, estagiária da Associação Beneficente de Reabilitação, local onde Henfil se tratava.

É importante lembrar que os anos 70 foram de chumbo no Brasil. Henfil esteve diretamente ligado com a luta contra a ditadura militar. Embora duvidasse da eficácia da guerrilha urbana (inclusive foi convidado para fazer parte e não aceitou por ver que era muito melhor como cartunista batendo no regime do que como guerrilheiro hemofílico) nutria grande admiração por guerrilheiros como Lamarca e Marighella e tinha um bocado de crença na guerrilha rural ao estilo chinês, influência de seu irmão.

Henfil sempre esteve disposto a ajudar seus amigos que haviam se lançado à luta armada contra a ditadura. Ajudou sua cunhada Gilse, tomando conta de sua filha Juliana enquanto a mãe estava presa e a escondendo sempre que foi preciso. Escondeu também seu cunhado o qual foi perseguido pelos militares. Nunca deixou de ajudar Betinho na clandestinidade, lhe enviando dinheiro no exílio. Além disso, contribuía financeiramente para organizações clandestinas que combatiam o regime militar. Através de seu dinheiro muitos panfletos e protestos contra o regime puderam virar realidade. Doou inclusive uma máquina copiadora para o PCdoB e ajudou na publicação do Livro Negro da Ditadura Militar. Com tanta combatividade acabou sendo fichado no DOPS em 20 de outubro de 1967 pelo Centro de Informações da Aeronáutica. Assim o prontuário descrevia Henfil:

“Seu nome verdadeiro é Henrique de Souza Filho. É irmão de um dos chefes da AP (Ação Popular), sr. Herbert José de Souza, elemento de cúpula da organização que já foi detido várias vezes por atividades subversivas. É chargista radical de esquerda. Até junho de 1967 colaborava com a revista Mossico (o nome certo era Mosaico) do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Minas, que reflete a orientação da UNE enquadrada na linha política da Ação Popular”.

Três motivos tiraram Henfil do Rio de Janeiro no ano de 1973: as fortes dores pelo corpo, por causa da hemofilia, o fizeram buscar um melhor tratamento; o aumento da repressão política, de forma assustadora, o obrigou a sair do Brasil em uma espécie de auto-exílio; e a vontade que seus cartuns ganhassem toda a América. Acabou indo parar nos Estados Unidos acompanhado de Berenice e ganhando uma vida de cucaracha.

5ª parte: O CUCARACHA NOS EUA
A viagem de Henfil para os EUA recebeu oposição de vários de seus companheiros de Pasquim. Muitos o acusaram de estar tirando o time de campo em uma hora importante, Henfil sempre desmentiu tal comentário.

Sem saber falar nada de inglês chegou aos EUA e logo se decepcionou profundamente ao saber que apenas um ano de tratamento lhe custaria 24 mil dólares. Nos hospitais o preconceito por ser brasileiro sempre foi grande, era obrigado a esperar demasiadamente e recebia um péssimo tratamento. As enfermeiras quando percebiam que ele não falava inglês o humilhavam e o inferiorizavam na desconhecida língua.

Foi um período em que sua doença piorou tanto a ponto de ter que usar bengala para conseguir se locomover até as sessões de fisioterapia. Ademais, a má condição física o tirou do Jornal do Brasil e o fez parar com a revista Fradim. O lado profissional não o ajudava. No Brasil a censura barrava vários de seus trabalhos e ele tinha que trabalhar infinitamente mais para poder ter alternativas e fazer com que os desenhos fossem publicados.

Um dos poucos momentos bons que teve ao Norte do mundo foi o encontro com seu irmão Betinho em Toronto. Os dois puderam finalmente matar um pouco da saudade que tanto os abalava.

Os problemas não tiraram sua vontade de publicar seus desenhos nos EUA. Foi obrigado primeiramente a se filiar a um sindicato. Depois de várias dificuldades para assinar contrato conseguiu publicar Os Fradins, que lá tinham o insosso o nome de The Mad Monks.

O resultado para Henfil não poderia ser pior no meio daquela sociedade conservadora e cheia de preconceitos. Os Fradins foram considerados invendáveis, imorais, pornográficos e desajustados. Acabaram sendo censurados no país dito da liberdade. Henfil ficou assustadíssimo, pois as tiras que enviou considerava tão bobas que não teve nem coragem de publicá-las no Pasquim.

Cartas e telefonemas ofensivos eram recebidos pelos jornais que tiveram a coragem de comprar os quadrinhos. A população estadunidense estava contra tamanho sadismo e imoralidade do terrível Baixinho, o qual chegou a ser tachado de anticristo e antiamericano. Em pesquisa feita pelo jornal Salt Lake sobre o que a população achava dos The Mad Monks, 400 disseram que eram contra e só 4 se manifestaram a favor. Por fim, depois de um boicote feito pelos jornais, Henfil resolveu romper o contrato. Jamais se entendeu com o modo de viver e a cultura estadunidense.

Em 1975 o Pasquim parou de ser censurado. Ao receber tão boa notícia Henfil correu para a janela e gritou bem alto para Nova Iorque inteira ouvir: “PUTA QUE PARIU!”. Voltava o sonho de um Brasil democrático. O mundo vivia o clima de Revolução dos Cravos (a qual foi vitoriosa em 1974 e muito comemorada por Henfil), independência de países africanos e fim do governo franquista.

Depois de 2 anos de sofrimento nos EUA Henfil voltou para o Brasil. Sua trajetória por esse país repleto de hipocrisia, falsos moralismos e preconceitos acabou retratada em seu livro intitulado: Diário de um cucaracha (eleito, em 1983, o livro do ano pelo Museu da Imagem e do Som).


6ª parte: ANDARILHO E COMBATIVO
Um dos prêmios por ter voltado para o Brasil foi poder conviver novamente com seu filho Ivan. As portas para Henfil em seu país de origem jamais se fecharam, voltou a desenhar para o Jornal do Brasil, onde novamente atacou com a Tuma do Zeferino, sendo que cada vez mais era a Graúna que fazia sucesso com seu jeito feminista e revolucionário. Outro jornal que o contratou foi A Notícia, onde passou a desenhar o personagem Orelhão, um operário de macacão que vivia todos os problemas enfrentados pelos trabalhadores.

Em 1975 junto com Tarik de Souza criou um de seus personagens de maior sucesso: Ubaldo, o paranóico. O qual era o retrato perfeito do atual momento do brasileiro que saía de uma das fases mais difíceis da ditadura, mas continuava com a mania de perseguição e de forma alguma conseguia se sentir seguro.

Cansado do Rio de Janeiro, Henfil, vai parar em Natal, depois da recomendação de João Saldanha e de ver uma foto da cidade em uma revista. Doido por viver em uma cidade pequena e para ver a caatinga de perto, a mudança não poderia ter sido melhor para o atual momento em que vivia.

Além de gastar seu tempo com as charges e quadrinhos, Henfil em Natal ficava um longo tempo conversando com seus amigos tentando convencê-los de que o socialismo era a saída para o Brasil, porém não fazia isso usando teorias marxistas, e sim, pitadas de humor. Além disso, a Isto É o havia contratado para preencher a última página da revista com As Cartas pra Mãe.

Na Isto É ocorreu mais um dos episódios que marcaram a carreira do Henfil. Ele começou, através da revista, a estabelecer uma comunicação com o General Geisel, sempre sugerindo o fim da ditadura militar.

Em 1977, acompanhado de Berenice, Henfil realizou o sonho de todo descendente político da Ação Popular, foi à China, país de Mão Tsé-tung, o qual havia morrido um ano antes.

Antes de viajar se preparou bastante, lendo vários livros sobre a China e a Revolução Chinesa. Acreditava que tal país revolucionaria o socialismo, fazendo balançar o comunismo ortodoxo.

Seu relacionamento com Berenice já não ia muito bem desde Nova Iorque. Na China algo muito a irritou, Henfil fez questão de tirar do roteiro da viagem todos os pontos turísticos para só conhecer locais populares.

O que via na China Henfil publicava semanalmente na revista Isto É e também no Pasquim. Posteriormente lançou um livro vendidíssimo chamado Henfil na China (o qual esteve entre os 10 mais vendidos de 1980 a 1981). Uma das coisas que não agradaram Henfil foi a arte chinesa. Segundo ele tal arte ainda permanecia sob influência do realismo socialista, endeusando os feitos revolucionários, os proletários e o camarada Mao. Para Henfil os cartunistas não deveriam trabalhar para o Estado e sim se colocarem eternamente como ovelhas negras.

De volta ao Brasil, sempre acostumado a fazer o que bem entendesse e não muito atento para o lado familiar, Henfil acabou sofrendo um duro golpe quando Berenice disse que não queria continuar com ele, pois estava apaixonada por João Ubaldo Ribeiro. Henfil mergulhou um bom tempo num mar de baixo-astral.

O espírito nômade começou a bater novamente em Henfil. Enjoado de Natal por causa da modernização que havia chegado à cidade, resolveu ir atrás do lugar onde tudo estava acontecendo: São Paulo. Era lá que Lula começava a ganhar grande destaque na liderança do movimento operário e Henfil sentia que tinha que estar acompanhando isso. Porém teve passagem marcante novamente pelo Rio de Janeiro, onde recuperou parte de sua animação em uma feira de humor no Museu da Imagem e do Som onde foram expostos cartuns seus que a censura havia vetado, e pelo México onde encontrou novamente com seu irmão Betinho e realizou uma grande entrevista com o líder das ligas camponesas Francisco Julião, exilado após o golpe militar.

Além de jornais, revistas e livros Henfil apareceu também no teatro através da peça de Ruth Escobar, denominada Revista do Henfil, a qual trazia vários de seus personagens e teve a honra de receber o prêmio Mambembe em duas categorias: melhor produção e melhor atriz. A peça também rendeu alguns problemas a Henfil e a Ruth Escobar, além de ter sido censurada em Brasília pelo governo Figueiredo, todos que estavam envolvidos com tal produção sofreram ameaças de algum tipo. Inclusive no auditório de apresentação da peça em Brasília se teve ameaças de bombas-relógios. O sucesso não ficou só entre o público tradicional, a Revista do Henfil foi apresentada também em presídios como o Carandiru.

Trabalhando no jornal Última Hora Henfil fez algo similar aos tempos de Geisel. Passou a escrever cartas para o presidente Figueiredo tratando-o como se fosse um primo seu. O jornal era lido pelo presidente e Henfil conseguiu fazer com que chegasse a ele a voz que clamava pela abertura política.

A mídia sindical também começou a marcar bastante a vida de Henfil, sem cobrar nada, apenas o material gasto, Henfil se aproximou de pessoas como Luís Inácio da Silva e Fernando Henrique Cardoso. Se teve simpatia extrema com o primeiro não se pode falar o mesmo do segundo. Henfil fez o alerta sobre FHC: “Esse cara não anda com o povo”.

Eram novos tempos para Henfil, o qual agora dividia seu apartamento com pupilos seus como Glauco e Nilson. Porém não se negava a hospedar quem precisasse. Certa vez abrigou Francisco Julião e sua esposa que haviam chegado do México. A vida de Henfil corria assim, cheia de gentilezas, trabalhos e problemas, como as ameaças que sofria do Comitê de Caça aos Comunistas.

Uma música com certeza marcou a vida de Henfil: O Bêbado e o Equilibrista de João Bosco e Aldir Blanc. Essa que se tornou o hino da anistia, se consagrou na voz de Elis Regina. Em um de seus versos (“Com a volta do irmão do Henfil”) clamava pela volta dos brasileiros no exílio, todos representados pelo irmão do Henfil, até então o desconhecido Betinho.

Foi um momento de grande movimentação na vida política e pessoal de Henfil. Ele, que depois de se separar de Berenice, teve várias mulheres pela sua vida como Bruna Lombardi, começou um sério namoro com uma garota de apenas 15 anos, chamada Lúcia Lara, a qual abriu brechas para mais polêmicas na vida do cartunista. Em nível político, Henfil comprava briga com o pessoal da tropicália e que aceitava a abertura negociada. Era inadmissível para Henfil uma derrubada da ditadura que não viesse do povo. Na sua lista de inimizades entraram pessoas como Caetano Veloso, Glauber Rocha, Gilberto Gil, Cacá Diegues e Reta Lee. Era capaz de frases como: “O Brasil padece de dois males: inflação e Reta Lee”.

Devido ao seu jeito radical de esquerda foi chamado junto com os que pensavam como ele de Patrulha Ideológica por Cacá Diegues. O nome pegou e Henfil em resposta criou a Patrulha Odara (se referindo a uma música de Caetano) que só fazia criar coisas alienadas, sem combatividade alguma contra o governo militar.

Em 28 de agosto de 1979 foi concedida a anistia. O Brasil pode receber vários filhos de volta, inclusive o irmão do Henfil, que chegou em 16 de dezembro. Nesse mesmo ano Henfil recebeu a medalha Vladimir Herzog do Comitê Brasileiro pela Anistia por seu empenho em favor dos direitos humanos.

Com o abrandamento da censura militar e estreitamento do mercado para desenhistas, outro tipo de censura começou a imperar: a censura empresarial. Onde Henfil se destacou bastante nessa época foi junto ao movimento sindical, informando aos trabalhadores e combatendo com eles. Acabou se tornando um dos mais fiéis e combativos adeptos do PT, sem jamais ter se filiado ao partido. Inclusive disse a Lula quando foi convidado para fazer parte dele: “Estou achando a proposta de vocês meio social-democrata, e eu sou revolucionário. O meu lance é mais embaixo”. Porém depois se acertaram e além de assinar o manifesto de fundação do PT, Henfil, se tornou grande amigo de Lula. Na verdade Henfil era mais lulista do que petista.

Em 1980 Henfil viajou para a Alemanha a convite do departamento de intercâmbio cultural do governo Alemão. Na volta disse ter detestado a viagem e soltou para quem quisesse ouvir: “Os alemães me lembram os nazistas”.

Declarações polêmicas eram mesmo o forte de Henfil. Uma ótima oportunidade para mostrar o nível de suas diabruras foi quando o Papa João Paulo II esteve no Brasil em 1980. Seus artigos atacaram ferrenhamente o papa, só pelo título já se pode imaginar: “Eu não gosto do papa”. Ainda teve tempo para desafiar o líder máximo da Igreja Católica: “Quero ver o papa entrar no meio do povo, sem os soldados romanos em volta. (...) Papa que precisa de segurança eu não respeito”.

Embora o governo militar estivesse chegando ao fim, a paranóia do povo não encontrava brecha para diminuir. Grupos paramilitares começaram a colocar bombas em bancas de jornal que vendessem jornais como o Pasquim.

Com a maior popularização da TV havia chegado a hora de Henfil se atualizar e entrar na vida dos brasileiros de outra maneira. Após uma entrevista para Maria Gabriela no programa TV Mulher, Henfil agradou tanto que foi convidado para fazer um quadro dentro desse mesmo programa com cerca de 8 minutos. O quadro se chamou TV Homem e era apresentado em preto e branco embora todo o programa fosse colorido, era mais uma das sacações de Henfil. Um dos seus objetivos era pregar a emancipação dos homens, ou seja, incentivá-los a vencer preconceitos e ociosidades e realizar tarefas que antes eram tidas como de responsabilidade feminina: costurar, lavar roupa, varrer casa, cozinhar etc. Henfil costumava encerrar o programa com a seguinte frase: “Indignem-se, homens!”.

Os que pensam que Henfil se rendeu a direita por estar na Globo se enganam completamente. Tinha total liberdade para fazer o que quisesse em seu programa e só uma vez teve problemas com reclamações do Maluf depois que esse sofreu ataques no ar. Aprontou tudo o que quis e foi o primeiro a colocar o Lula na televisão em uma rápida entrevista em seu quadro, mesmo sem consultar a Globo. Sua mãe também acabou como personagem do programa, o mesmo ocorreu com os auxiliares técnicos. Assim foi, até que teve que ser afastado por problemas de saúde.


7ª parte: MORRENDO AOS POUCOS
Começava uma nova fase na vida de Henfil, não menos polêmica, porém mais pessoal. Henfil entrou numa “fase cósmica”. Tão abalado pela hemofilia e desesperado atrás de alguma salvação foi atrás do famoso paranormal Thomaz Green Morton (o qual no início do século XXI seria apontado pelo programa Fantástico como um farsante e todos os seus fenômenos apresentados como simples truques de mágica). Esse ficou responsável por lhe aliviar as dores pelo corpo e ocasionadas pelos cálculos biliares em sessões de energização em Pouso Alegre.

A situação de Henfil era tão grave que ele necessitava de qualquer forma se apegar a alguma coisa que lhe desse esperanças de vida. Thomaz apareceu como tal coisa. Henfil o via como um Jesus Cristo sacana. O cartunista que antes era cético com tais tipos de poderes agora se aproximava devido ao desespero. Porém, usar os poderes de Thomaz não era uma contradição ao pensamento de Henfil, já que esse jamais se disse ateu e na verdade sua grande crítica era contra o tradicionalismo católico e as teologias que por aí estavam.

Além de Thomaz Green Morton outra pessoa se tornou muito amiga de Henfil nessa época difícil de sua vida. Pessoa essa, inclusive, que passava por um momento mais difícil que o próprio Henfil: Teotônio Vilela, o qual estava com um tumor no cérebro.

A admiração de Henfil pela luta de Teotônio para conseguir as diretas foi tão grande que mesmo esse não sendo uma figura de esquerda foi transformado pelo cartunista em símbolo das diretas e estampou milhares de camisas e a capa do livro de Henfil, sempre com o jargão: “Diretas Já!”. Pouco tempo durou tal amizade, o senador Teotônio Vilela não resistiu muito e morreu em 27 de novembro de 1983.

Enquanto a doença consumia Henfil, esse lutava contra, sempre trabalhando. Sua mais nova experiência se deu no Rio de Janeiro com o filme Tanga: Deu no New York Times do qual foi roteirista, diretor e ator, interpretando o personagem Kubanin, cujo nome era uma homenagem ao anarquista Bakunin.

De momentos difíceis a vida de Henfil estava repleta. Mais uma vez ele despertou dura polêmica e oposição por não apoiar Tancredo Neves na famosa “transição transada”. Para ele tanto Tancredo quanto Maluf não dariam para o Brasil o futuro merecido. Ao seu ver, a transição da ditadura para a democracia deveria ser liderada por uma pessoa do povo como o Lula. Tal pacto feito pelas elites para chegar a um governo democrático despertou grande raiva em Henfil, ainda mais porque viu o povo apoiando tudo isso. Frases suas foram marcantes em um momento difícil como esse: “O que o Tancredo deveria ter herdado de Getúlio Vargas não era a caneta, era o revólver” (a qual resultou em sua saída da Isto É por se negar a publicar), “Eu já vi o povo ser safado várias vezes”. (a qual mostrou toda sua indignação contra a maioria da população que aceitou o governo Sarney após a morte de Tancredo e desistiu de lutar por uma abertura inteiramente popular).

O fim da vida de Henfil foi marcado por uma grande decepção política, por causa da “transição transada” e por um horrível sofrimento em vários hospitais. Como Hemofílico sofria infinitamente mais a cada operação que fazia e, os anos 80, foram fortemente marcados pelo incrível crescimento dos casos de AIDS. Henfil antes mesmo de contrair a doença por transfusão de sangue previu: “Não sei não, acho que vou morrer de AIDS”.

Profissionalmente levou os últimos dias de sua vida trabalhando para jornais como o tradicionalíssimo Estado de São Paulo, um dos poucos que ainda publicavam seus desenhos.

Enfrentou diversas operações, pneumonia, infecções, septicemia, hemorragias, demência e AIDS (a qual quase sempre preferiu fingir que não sabia que havia contraído). Mesmo tendo retornado um curto período para casa acabou imóvel em uma cama de hospital só conseguindo mexer os olhos, os quais também pararam de mexer em novembro de 1987. Em estado vegetal Henfil permaneceu até o dia 4 de janeiro de 1988 quando finalmente morreu às 20:50h. Osmar Santos anunciou sua morte para uma platéia de 4.500 pessoas que participavam de um show em sua homenagem promovido por diversos humoristas.

Bibliografia:


MORAES, Dênis. O Rebelde do Traço: A Vida de Henfil, SP, José Olympio Editora, 1996.

HENFIL & TARIK. Como se faz humor político, Vozes, 1984.

HENFIL. Diretas Já, Rio de Janeiro, Record, 1984

HENFIL. A Volta da Graúna. São Paulo, Geração Editorial, 1993.

HENFIL. A Volta da Fradim. São Paulo, Geração Editorial, 1993.

HENFIL. A Volta de Ubaldo, o Paranóico. São Paulo, Geração Editorial, 1994

Por Vinícius Antunes da Silva;

7 comentários:

  1. Olá , adorei saber mais sobre a vida e obras do Henfil .Gostaria de obter ou saber como obter o texto , "Sangue de berata".Uma cronica sobre as discriminações que sofreu por ser hemofíco.
    Segue email para contato:mc_carminha@hotmail.com

    Muito Grata. M do carmo

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  2. Parabéns pela matéria.Tive a honra de conviver com Henfil,na rua Machado de Assis,ocasião que morávamos no mesmo prédio. Quando Henfil viajava meu pai cuidava de seu canário de estimação.Da janela de meu quarto o via debruçado sobre sua prancheta trabalhando como uma máquina e pela janela muitas vezes ficávamos conversando.
    Embora tivesse comprado um fusquinha creme,Henfil tinha medo de dirigir e muitas vezes o levava para o hospital e cabeleireiro,naquele tempo profissão mais conhecida como barbeiro.Seis anos mais novo que ele,realmente fui premiado por poder conviver com essa figura maravilhosa. Obrigado Henfil.Saudades !
    Ricardo de Magalhães Carneiro
    rmcarneiro@gmail.com

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  3. Parabéns pelo conteúdo. Gostaria de seguir suas postagens.

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  4. Obrigado zé Bento. É só clicar no Seguir que você fica sabendo de todas as atualizações. Abraço

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  5. Parabéns professor Yuri! Estou "estudando" e ampliando meus conhecimentos de história atravez do blog.Muito bom podermos saber mais sobre a vida de Henfil.

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  6. Adorei o texto
    me tornei uma grande fã e admiradora do Henfil
    agora estou louca pra le a biografia dele!

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