domingo, 1 de novembro de 2009

Michel Focault e o poder: Disciplina e Gestão

O propósito desse trabalho é tentar esclarecer como Foucault, especificamente, em sua aula do dia 17 de março de 1976, ministrada durante um curso no Collège de France nos anos 1975-1976 (“Em defesa da sociedade”) na qual são abordados os temas: “Do poder de soberania ao poder sobre a vida. - Fazer viver e deixar morrer. - Do homem-corpo ao homem-espécie: nascimento do biopoder. - Campos de aplicação do biopoder. - A população.- da morte, e da morte de Franco em especial. - Ariculações da disciplina e da regulamentação: a cidade operária, a sexualidade, a norma. – Biopoder e racismo. - Funçoes e áreas de aplicação do racismo. – O nazismo. – O socialismo”, preocupava-se em como se: forma, transmite, transitam, constituem as redes de poder. Porém o que será enfocado nesse fichamento são os conceitos de poder soberano, biopoder, gestão e disciplina. Os conceitos de poder soberano e biopoder foram durante anos, até mesmo séculos, utilizados para legitimar uma determinada posição frente a um indivíduo ou à população, posição que sempre implicava em vida e morte. Segundo Foucault, o elemento aglutinador que permitiu que esses dois conceitos representassem a uma só vez esse mesmo objetivo foi o racismo tradicional e diz que “a raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização” (p.306 “Em defesa da sociedade”). Esse racismo tradicional pode ser resumido como ódio pelo outro, mas, acima de tudo, uma espécie de justificativa científica para permitir o domínio de alguns sobre outros e a utilização dessas formas de poder sobre os mais fracos, ou seja, os vencidos, o anormal, os que não estavam do lado do poder. Tal que “a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (p.304 “Em defesa da sociedade”). Assim, deve-se estudar o poder perguntando “não a sujeitos ideais o que puderam ceder de si mesmos ou de seus poderes para deixar-se sujeitar, deve-se investigar como as relações de sujeição podem fabricar sujeitos” (linhas 9 a 12 da 1ª p. do Resumo do curso “Em defesa da sociedade”).

O interessante da análise é justamente que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Ao indicar que o poder e seu exercício não são localizáveis em dado ponto, Foucault desloca o problema para a análise de práticas de poder, tecnologias do sujeito, regimes de verdade que formatam, padronizam corpos dóceis e úteis. Neste sentido, Foucault diz que o poder não é proveniente de um poder originário (ponto único), ele é, na verdade, uma rede (net) complexa que ao contrário de questionar as relações de sujeição, pensa-se na fabricação de sujeitos livres. A idéia de poder como rede complexa não significa, na sociedade contemporânea, que o poder está necessariamente fora do Estado. As novas formas de poder não se diferenciam da Soberania pelo titular. É possível que o Estado participe da rede complexa, ele pode exercer poder sem usar a força, trocando a força pela influência.

A filosofia política do século XX mostrou que o poder produtor de normas na sociedade contemporânea não se limita mais à idéia de soberania que baseava-se na violência física, repressão, opressão; Estado-nação liberal; normas coativas; sanções punitivas. Existem outras formas de poder diferentes da Soberania, segundo o filósofo francês Michel Foucault, e que as organizou em duas categorias: a disciplina e a gestão. A primeira possui normas técnicas, ou seja, normas padronizadoras de comportamento (adestramento), sanções premiais, apoia-se no direito econômico e cria um Estado de Bem-estar social. Enquanto a segunda funda-se na ausência de sanções, na governamentabilidade, isto é, no domínio da vida, na sociedade internacional, direito internacional, em normas permissivas e programáticas, assim, estabelecendo os fins das ações.

Para Foucault o poder não se reduz mais à idéia de dominação, nem mesmo à idéia de dominação burocrática. Certamente ela, a Soberania, continua sendo produtora de normas jurídicas, mas atualmente a produção de normas ultrapassa o espaço da Soberania, pois existem outros poderes produtores de normas. Daí dizer que um dos fenômenos fundamentais do século XIX pode-se denominar de a assunção da vida pelo poder: ou melhor dizendo, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do biológico.

Assim, há a superação histórica da forma de poder soberano, dominante na Idade Média, pela emergência do poder disciplinar no final do século XVIII, poder esse que se centra no adestramento do corpo com vistas a um melhor aproveitamento do tempo e concomitante maximização do rendimento do trabalho. Através da disciplina ”somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer”.

O que diferencia as novas formas de poder são os mecanismos de exercício do poder, e não a sua titularidade. O poder deixa de usar a força. Por um lado, ele a troca pelo adestramento, ou seja, a transformação do ser humano em um objeto dócil e útil; estabelecendo o que é anormal e procurando adequar, padronizar esse anormal ao “modelo” social exemplar. Por outro lado, os novos mecanismos de poder podem ultrapassar o mero adestramento, eles podem ir além do mero corpo individual. O que esse poder faz, por exemplo, é tratar a doença ao invés do doente. Essa outra forma atinge toda a população por meio da programação da vida. O poder neste caso dá-se pelo controle dos processos vitais (nascimento, desenvolvimento, saúde, sexualidade etc). Esse é o poder enquanto gestão, que não passa de uma dominação voltada para a sobrevivência, por isso seu principal ponto é a Economia. Enquanto a Soberania em sua teoria clássica, baseada no direito da espada do soberano (a vida e a morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana), um poder que se valia da força para fazer morrer e deixar viver, a gestão, ao contrário, é um poder baseado na influência para fazer viver e deixar morrer. Nas palavras de Foucault: “A morte era igualmente uma transmissão do poder do moribundo, poder que se transmitia para aqueles que sobreviviam: últimas palavras, últimas recomendações, últimas vontades, testamentos, etc. Todos esses fenômenos de poder é que eram assim ritualizados. Ora, agora que o poder é cada vez menos o direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no “como” da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder. Ela está do lado de fora, em relação ao poder: é o que cai fora de seu domínio, e sobre o que o poder só terá domínio de modo geral, global, estatístico. Isso sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade” (p.296 “Em defesa da sociedade”).

Foucault fala dessa transformação não no nível da teoria política simplesmente, mas, antes, no nível dos mecanismos, das técnicas, das tecnologias de poder. E para tanto estuda o “como do poder”, isto é, tenta apreender seus mecanismos, entre dois pontos de referência ou dois limites: de um lado, as regras de direito que delimitam formalmente o poder, de outro lado, a outra extremidade, o outro limite, seriam os efeitos de verdade que esse poder produz, que esse poder conduz e que por sua vez, reconduzem esse poder. “De que se trata nessa nova tecnologia do poder, nessa biopolítica, nesse biopoder que está se instalando? (...): trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de natalidade, mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos, constituíram, acho eu (Foucault), os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica” (p.290 “ Em defesa da sociedade”).

A emergência de uma nova dinâmica de poder, não diz mais respeito exclusivamente à lei e à repressão, mas que dispõe de uma riqueza estratégica porque investe sobre o corpo humano, não para torturá-lo, contudo para adestrá-lo: não para expulsá-lo do convívio social, senão para explorar-lhe o máximo visto que a disciplina não é uma estratégia de sujeição política exclusivamente repressiva, todavia positiva: o poder é produtor da individualidade, o indivíduo é uma produção do poder (e do saber). O poder disciplinar não destrói o indivíduo, ao contrário, ele o fabrica. “O indivíduo não é o outro do poder”, que é por ele aniquilado; e sim, é um de seus mais importantes efeitos. Porém é necessário ficar esclarecido que não é todo poder que individualiza, mas sim o disciplinar. Além disso, esse poder é característico de uma época, de uma forma específica de dominação. A existência de um tipo de poder que pretende instaurar uma dissimetria entre os termos de sua relação, no sentido em que se exerce o mais possível anonimamente e que deve ser vivido individualmente. É nesse sentido que se trata de uma forma de poder que se opõe ao modelo da soberania.

A partir dos corpos que controla, a disciplina produz quatro tipos de individualidades: ”é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), genética (pela acumulação do tempo) é combinatória (pela composição das forças)”. Foucault quando caracteriza o biopoder, o faz comparando-o com o poder disciplinar. “Uma tecnologia de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, a integra, que a modifica parcialmente e que, sobretudo vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia. Essa nova técnica não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro nível, está em outra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes” (p.288-289 “Em defesa da sociedade”).

No estudo do biopoder, o nosso filósofo direciona sua abordagem para os dispositivos de normalização considerados enquanto “mecanismos de regulação” da vida. Nos procedimentos da biopolítica, não se trata apenas de distribuir, vigiar e adestrar os indivíduos dentro de espaços determinados, mas de dar conta dos fenômenos amplos da vida biológica. O biopoder tem por agente máximo o Estado moderno cuja bioregulamentação volta-se não para o “fazer morrer” (como no poder soberano medieval), mas para o “fazer viver”, estentendo o ciclo produtivo da vida humana coletiva. Trata-se de atuar sobre os fenômenos naturais que se manifestam numa determinada população. Este é o domínio contínuo pelo que Foucault chamará de “arte de governar”. Entendida como a racionalidade política que determina a forma de gestão das condutas dos indivíduos de uma dada sociedade.

O biopoder, utilizando pseudo-argumentos biológicos, escolhe a quem deixar morrer. Para essa escolha, a partir do ultimo quartel do século passado, ele passa a dispor de instrumentos altamente sofisticados, baseados em uma linguagem digital comum, por intermédio da qual a informação é gerada, armazenada, recuperada, processada e transmitida. Hoje, ainda que não seja mais um atributo apenas do Estado, o biopoder continua, nessa nova conjuntura, a fazer viver e a deixar morrer, o que permite que a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal) ”seja aquilo que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura”.

Contudo, o importante na leitura desse trabalho é entender que o poder não possui substância e por isso Foucault tenta descrever o funcionamento de seus mecanismos. Já quanto à época moderna, esses mecanismos são descritos como mecanismos de normalização. Sua forma de atuação apóia-se nos procedimentos de distribuição espacial, fracionamento do tempo, controle das atividades e composição das forças individuais, cujo efeito é a padronização das ações dos indivíduos em suas diversas realizações. Estes procedimentos técnicos de normalizações, que têm como ponto de inscrição privilegiado os “corpos” distribuídos nos espaços institucionais são denominados por Foucault de “disciplina”. Os mecanismos da disciplina atuam no nível capilar dos gestos individuais e seu funcionamento pode ser descrito segundo uma “microfísica. Resumindo bem a idéia que foi desenvolvida nesse trabalho e valendo das palavras de Foucault: “A situação contemporânea do poder vai além das teorias substancialistas que aparecem no campo da soberania. Hoje, o poder é mais uma relação de influência, o exercício do poder não ocorre pela dominação de sujeitos livres. Agora o exercício do poder corresponde à fabricação de sujeitos livres” (“Em defesa da sociedade”). Pode-se, de acordo com a filosofia de Foucault, chegar a uma conclusão um tanto drástica na qual restaria a nós, homens, a possibilidade de aceitar o adestramento para vivermos em sociedade, ou recusá-lo e morrermos socialmente. No entanto, o projeto teórico de Foucault diz respeito ao “pensamento como atividade crítica na análise histórica” e mais “(...) a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder (dos governos) e o poder sobre seus discursos (dos governos) sobre a verdade; a crítica será a arte da não-servidão voluntária, da indocilidade refletida” (p. 44 “A ordem do discurso”). Além disso, um homem morto não poderia resistir ao poder, como queria Foucault.

Por Luciane Martins Scaramel

2 comentários:

  1. Gostei muito do artigo, parabéns! Foucault trabalha para mim no sentido de realizar uma anatomia política do detalhe, ou seja, ele não busca justificar o poder ou demonstrar o seu necessário exercício, também não deplora seus excessos. O que ele faz é uma tentativa de desmascarar o poder onde quer que se exerça, nos mostrando suas diversas facetas. Penso que os Cursos do Collège de France ou os 3 volumes da História da Sexualidade, quando analisados a finco, nos mostram detalhes importantes de um Foucault ainda desconhecido por muitos. Nesses últimos escritos ele nos mostra que da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles, também há a pulverização dos pontos de resistência, forjados por sujeitos comuns que não obedecem a uma verdade instituída. Outro exemplo, em um curso ministrado no Collège de France no biênio 1973-1974, Foucault não cessa de oferecer exemplos das ações humanas no interior das máquinas montadas, exemplificando "táticas e estratégias" através das quais os sujeitos também se colocam na condição de exercer e enfrentar o poder; a dominação pelo poder é produtiva e duradoura, mas envolve recusa e resistências. Sou apaixonada demais para falar de Foucault, daí que já não consigo manter certo “afastamento epistemológico”, necessário àqueles que buscam compreender seus escritos.

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